A tributação da locação residencial pura pelo IBS/CBS: Uma análise sistemática da LC 214/25 à luz da natureza civil do instituto e dos limites constitucionais do tributo sobre consumo
O presente estudo examina a incidência do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e da CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços - instituídos pela LC 214/25 no contexto da reforma tributária do consumo, promovida pela EC 132/23 - sobre a locação residencial pura de imóveis. Demonstra-se que, embora a lei complementar tenha incluído a locação no conceito de "fornecimento oneroso de bens", não se encontra assegurada, no plano constitucional, a plena incidência sobre a locação residencial desprovida de caráter empresarial, por força da natureza civil do contrato, da jurisprudência consolidada do STF e dos princípios da segurança jurídica, da legalidade estrita, da capacidade contributiva, do art. 110 do CTN e da função social da propriedade. Conclui-se pela existência de relevante espaço hermenêutico para defender a não incidência em hipóteses estritamente patrimoniais, bem como a incidência ampliada quando a operação revele perfil econômico, empresarial ou prestacional típico de consumo.
1. Introdução
A reforma tributária do consumo, materializada pela EC 132/23 e pela LC 214/25, constitui a mais profunda reorganização do regime jurídico-tributário brasileiro desde a CF/88. Ao substituir o mosaico de tributos indiretos por um IVA dual - IBS e CBS -, pretendeu-se simplificar, ampliar a base e uniformizar a incidência sobre "operações com bens e serviços".
Nesse cenário, um dos temas que mais tem provocado perplexidade hermenêutica é a tributação das locações residenciais puras. Historicamente inseridas no campo do Direito Civil Patrimonial e tratadas como fato gerador de renda imobiliária, as locações tendem, pela literalidade da LC 214/25, a ser enquadradas como "fornecimentos onerosos", passíveis de IBS e CBS.
O objetivo deste artigo é investigar se essa conclusão se sustenta diante da natureza jurídica do instituto, da jurisprudência constitucional consolidada e dos princípios da tributação.
2. O marco normativo: EC 132/23 e LC 214/25
A EC 132/23 redesenha o sistema tributário de consumo, instituindo:
A LC 214/25 define como hipótese de incidência "todo fornecimento oneroso de bem ou serviço", elencando expressamente locação, arrendamento e cessão entre as operações tributáveis. De forma inédita em nosso sistema, contempla capítulo específico sobre locações imobiliárias e, inclusive, locações residenciais.
Em complemento, a lei:
À primeira vista, portanto, a locação residencial seria alcançada pelo IBS/CBS.
Mas essa interpretação literal é suficiente?
A resposta exige leitura principiológica, sistemática e histórica do ordenamento.
3. Natureza jurídica da locação: Obrigação de dar e fruição patrimonial
O primeiro marco hermenêutico é o CC, que caracteriza a locação como contrato mediante o qual se transfere uso e gozo de coisa infungível, mediante aluguel.
A doutrina tributária clássica é unânime ao afirmar que:
Roque Antonio Carrazza, Hugo de Brito Machado e Paulo de Barros Carvalho - dentre outros - afirmam que a essência jurídica da locação é patrimonial, e que a sua tributação, desde sempre, se dá pela via do Imposto de Renda sobre aluguel, e não por tributos sobre consumo.
Esse entendimento encontra suporte no art. 110 do CTN, que impede que o legislador tributário altere o conteúdo de institutos de direito privado para fabricar competência tributária onde ela não existe.
4. O STF e a jurisprudência constitucional sobre locação
A jurisprudência do STF sobre o tema é clara desde o início dos anos 2000, com o julgamento do RE 116.121/SP, consolidado posteriormente na súmula vinculante 31.
O Tribunal reconheceu que:
Embora IBS/CBS não sejam ISS, a ratio decidendi permanece aplicável:
Se a locação não contém serviço e não revela circulação econômica típica de consumo, tributá-la como operação de mercado viola o conteúdo jurídico do instituto e afronta o art. 110 do CTN.
5. O conflito sistêmico: Renda versus consumo
A dúvida hermenêutica nasce justamente da interseção entre dois campos tributários distintos:
|
Tributação Histórica da Locação |
Tributação Proposta pela LC 214/2025 |
|
Regime de renda (IR) |
Regime de consumo (IBS/CBS) |
|
Obrigação de dar |
Operação econômica onerosa |
|
Fruição patrimonial |
Fornecimento de bens |
|
Sem cadeia de valor |
Inclusão em cadeia de consumo |
A reforma desloca a locação do terreno da renda para a materialidade do consumo.
Mas essa conversão é juridicamente sustentável?
Tudo depende da essência econômica e social da locação.
Se a locação residencial pura:
6. Princípios constitucionais aplicáveis
a) Legalidade estrita
A lei afirma a incidência, mas não supera a análise constitucional, sobretudo quando a base tributável é artificialmente ampliada.
b) Segurança jurídica e proteção da confiança
Por mais de três décadas, o sistema tratou a locação como fato patrimonial submetido ao IR, consolidado pela jurisprudência do STF. Mudanças bruscas exigem ponderação.
c) Capacidade contributiva e não confisco
Tributar a locação residencial pequena e pessoal significa tributar duplamente a mesma riqueza (IR + IBS/CBS), o que afronta proporcionalidade e progressividade, além de encarecer o acesso à moradia.
d) Função social da propriedade
A locação é instrumento de concretização da função social ao colocar imóveis no mercado de habitação. Tributação excessiva desestimula oferta e reajusta preços.
e) Art. 110 do CTN
O núcleo civil do instituto não pode ser manipulado para finalidades fiscalistas. Locação não vira operação econômica de consumo por mera disposição legal.
7. Diferenciação essencial: Quando a locação deixa de ser pura
Não se confunde locação residencial com hospedagem ou exploração empresarial de imóveis.
As seguintes hipóteses indicam incidência robusta de IBS/CBS:
Nesse caso, há:
Aqui, a tese de incidência é juridicamente sólida.
8. Síntese conclusiva
A LC 214/25 positivou a locação como operação tributável, mas não esgotou o debate.
A locação residencial pura, civilmente compreendida, permanece como expressão patrimonial da propriedade, sem integração direta à cadeia de consumo. A jurisprudência e a doutrina confirmam sua natureza de renda imobiliária, não de fornecimento mercantil.
Dessa conjugação de elementos resulta uma conclusão técnico-sistemática:
Há robusto espaço constitucional, hermenêutico e jurisprudencial para sustentar que a locação residencial pura - sobretudo quando exercida por pessoas físicas e sem caráter empresarial - não deve ser submetida ao IBS/CBS, preservando-se o núcleo conceitual do instituto, o art. 110 do CTN, a segurança jurídica, a função social da propriedade e a lógica tributária histórica.
Por outro lado, quando a locação revela perfil empresarial, dinamismo econômico, serviços agregados ou exploração organizada do ativo, encontra-se perfeitamente inserida na esfera de incidência do IVA dual, transformando-se, aí sim, em operação de consumo.
Conclui-se, portanto, por uma interpretação restritiva, capaz de harmonizar a LC 214/25 com a Constituição, com a doutrina civil-tributária e com a jurisprudência constitucional, sem negar os espaços legítimos de incidência naqueles casos em que a locação transcende sua natureza estática e ingressa no domínio econômico das utilidades prestadas ao mercado.
Voltar para a listagem de notíciasCliente desde 1990
Cliente desde 2018
Cliente desde 1991
Cliente desde 1993
Cliente desde 1987
Cliente desde 1999
Cliente desde 1998
Cliente desde 1999
Cliente desde 1991
Cliente desde 2015
Cliente desde 2013